quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dogmas, Diferenças e a Reforma Psiquiátrica

DOGMA é uma crença / doutrina imposta que não admite contestação. São afirmações absolutas que não permitem discussão, um conjunto sistemático de representações, normas ou regras que indicam ou prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar. Também indica o que esses membros devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e fazer (wikipédia – enciclopédia livre online). Portanto, dogmas são inimigos da diferença. Para os dogmáticos quem pensa diferente ocupa um lugar oposto no front da guerra e, como inimigo, deve ser eliminado.
Uma das experiências mais fortes da minha vida aconteceu durante o um ano e meio em que morei nos EUA, como já contei em outra postagem, convivendo com pessoas de diferentes países. Uma amiga da Palestina um dia conversou comigo por mais de duas horas. Ao final da conversa, com os olhos marejados de lágrimas, me agradeceu por tê-la ouvido sem julgá-la. Minha amiga me contou sobre sua dor, sobre seu ódio dos Israelenses, sobre as experiências dolorosas que viveu. Demonstrou submeter-se a um dogma e acreditava totalmente que o conflito do Oriente Médio jamais terá fim, pois não há possibilidade de os Palestinos ou os Israelenses abrirem mão de suas teses sobre a terra prometida. Não há mudança possível, para ambos os lados, segundo minha amiga. E o ódio se dá, pois um povo contesta o dogma do outro.
O que me permitiu ouvi-la contar tantas atrocidades por tanto tempo foi perceber que ela era alguém doce, especial, engajada, inteligente, mas tomada, dominada por um dogma. Incapaz de abrir mão dele, sem sentir-se traindo seus pais, seu povo e a si mesma. E sofrendo demasiadamente com isso, pois no fundo ela sabia que havia algum equívoco naquilo tudo. O ódio havia se tornado uma questão ética e política naquele contexto. Minha amiga me emocionou e talvez eu jamais consiga transmitir para ela, o que essa conversa produziu em mim. Até hoje nos escrevemos de vez em quando ...
Tendo sido militante política de um grupo de esquerda construí-me numa ideologia muitas vezes sectária. Ainda acredito na esquerda, nos ideais socialistas, mas minha experiência com gente de tantos países diferentes e, em especial, com minha amiga Palestina me fez entender que o sectarismo só serve à política do ódio. Uma estratégia nada revolucionária de propagação do horror e da destruição. Sendo, hoje, uma militante da reforma psiquiátrica e uma engajada em projetos de inclusão social para os diferentes, vejo e sinto no quanto minha amiga me ajudou.
Domingo passado Ferreira Gullar escreveu contra a lei 10.216, a lei que legitimou a reforma psiquiátrica no Brasil, propondo o fim dos manicômios e abertura de serviços substitutivos como os CAPS. O poeta é contra a lei, pede a revogação dela, tem dois filhos esquizofrênicos, diz que a lei dificulta o tratamento de seus filhos e quer a volta da internação como prioridade. O Poeta foi duro... Contudo, a resposta de vários colegas do meu campo de trabalho foi para mim por demais dolorosa de ler... Ataques ao Poeta com uma dureza maior ainda... Será que o Poeta não pode pensar diferente? Será que todos têm que concordar com a lei 10.216 para serem aceitos? Será que devemos responder à dor de um pai com a mesma dureza com que a sua dor se fez revelar? Será que o nosso campo considera o ideário da reforma psiquiátrica como um dogma incontestável?
Fico pensando se os filhos do Poeta receberam a ajuda necessária de nós profissionais. Fico pensando em quantos familiares não partilham das idéias de Ferreira Gullar e se conseguiremos ganhá-los para o nosso modo de tratar fora de internação, com intensidade de cuidado nos CAPS. Imagino o quanto ainda temos que lutar para mostrar para a sociedade como um todo que a lei 10.216 é uma conquista fantástica e que nós precisamos dos familiares para conseguir mais avanços ainda na reforma psiquiátrica brasileira. Fico pensando na minha amiga Palestina e na sua dolorosa filiação a uma política do ódio. Não podemos responder à dor de um pai, ainda que reacionário na sua forma de pensar, com política do ódio. Isso vai de encontro ao essencial de nosso trabalho: a aceitação da diferença e o respeito a ela. Não temos que concordar com o Poeta, mas acolher sua forma de pensar como possível, abrir o diálogo, aceitar que nosso campo pode ter falhado com ele e propor alternativas. Novos orientes médios se fazem todos os dias quando dogmas se colocam como a forma de entender a vida .... Dogmas não entendem de vida, não respeitam a diferença...Eles produzem morte e devastação!

4 comentários:

Fabiana Kubiak disse...

Oi, Patrícia! Cheguei ao seu blog através do seu comentário no do Bruno Gagliasso...sou psicóloga, trabalho em salvador com saúde mental.

Gostei bastante dos seus textos, da sua sensibilidade e ao mesmo tempo crítica diante de tantos contratempos temos que lidar todos os dias, principalmente quem trabalha com a loucura.

Vou acompanhar seus textos, com certeza!

Louca pela Vida disse...

Quanto a Ferreira Gullar pai... como psicótica não gostaria de ser um dos filhos dele, nem em sonho. Família que ainda não sabe nada de medicação, dos terríveis efeitos colaterais delas, como um antipsicótico lançado em 1959, como o Haloperidol, usado ainda em larga escala dentro dos manicômios, enquanto existem antipsicóticos bem mais atuais, com resolutividade melhor e com efeitos colaterais mais toleráveis. E amplictil? Gente, mesmo sendo poeta, um senhor de uma certa idade que merece nosso respeito, ele precisa urgente sentar com outros familiares em grupos de apoio e aprender ou reaprender o mínimo da convivência conosco.
Minha família,foi importante numa crise aguda, é no suporte, caso eu precise, mas me dá liberdade de ser diferente. Minha família, é a excêntrica família de Louca pela Vida! É preciso acreditar que possamos educar a família. É difícil, porque somos diferentes.

Médico com M maísculo. disse...

Patricia,como teu colega de profissão quero parabenizá-la pelo bom senso que teve ao abrigar as dores do nosso poeta. Alguns individuos, principalmente psicologos da área Freudiana se comportaram como verdugos ao julgar a pessoa, a familia e até mesmo o profissional que é Ferreira Gullar. Muitos se esqueceram até de olhar o próprio umbigo, se é que ainda o tem... Nós médicos, conscientes da dura realidade brasileira e da anarquia qu se instalou com o avento do SUS, que abundam gestores corruptos e politiqueiros sem vergolha que ocupam cadeiras no congresso ena camara, tornando a reuneração paga pelo SUS uma vrdadeira esmola. O objetivo inicial da Lei 10.216 nunca foi nenhuma reforma psiquiátrica, o autor do PL já falecido, foi claro por diversas vezes, que a intenção da Lei era puramente trazer economia para o SUS, uma vez que manter hospitais psiquátricos era caro, por isso tramitou mais de 10 anos até aprovação final do texto atual. Ficou bonitinha, mas sabemos que é ordinária. Sabemos que os CAPs não funcionam para ninguem, que muitos " trabalhadores " que lá foram lotados são apenas fantasmas nas folhas de pagamento, e só alguns abnegados ainda permanecem atuando porque possuem principios morais e espirituais, mas não se construe nada nem se cura ninguem apenas fazendo de conta. O fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos foi na verdade um atestado da ineficiencia das pessoas responsáveis pela sua fiscalização e também, isso é inegável, da falta de amor de familiares que alí abandonaram seus iguais. Mas um erro não pode justificar outro, o que deveria ser feito era uma reforma da mentalidade hospitalar, de forma a trazer humanidade para o seu funcionamento e nunca fechá-los, pois se fossemos agir assim deveríamos também fechar o congresso, o senado e vai por aí afora...
Lamento de verdade que as pessoas que agora se intitulam reformistas, não tenham o mesmo pensamento de forma a levantar a bandeira das familias e dos pacientes com doenças mentais, pois os CAPs são um desastre nacional, uma hipocrisia a toda prova que já mereciam também ser desativados como fizeram com os hospitais. Condenar Ferreira Gullar por atacar a pseudo reforma psiquiática é uma atitude digna de pessoas insensíveis e com provável motivaçao escusa.

Paciente IRS ® disse...

Eu sou paciente psiquiátrica e acho um absurdo psicólogos, assistentes sociais e sociólogos defenderem que o hospital psiquiátrico deve ser extinto. O que deve ser extinto são os péssimos profissionais, os torturadores do antigo sistema hospitalocêntrico. Isso, ninguém quer fazer! É muito mais fácil criticar uma estrutura ainda necessária, isentar os péssimos profissionais e ainda sair como os santinhos da saúde psiquiátrica... É pura politicagem...Quem defende essa ditadura,tem interesse de manter seus cargos às custas da saúde da sociedade. Por que não defendem hospitais psiquiátricos pra quem precisa e Caps ou "Creche" pra quem quer?
Tem muito paciente que gosta de Caps e tem pacientes que preferem o Hospital Psiquiátrico. Por que não respeitar o direito de escolha dos pacientes psiquiátricos?
A Lei 10.216 é excelente, só falta respeitar o livre arbítrio cidadão.
Muito se critica sobre o uso das medicações psiquiátricas, porém, quando pacientes dos Caps têm crises incontroláveis e perturbam o ambiente, todos os profissionais auxiliares da Medicina defendem a aplicação de Haloperidol + Fenergan. Engraçado, né? Em Belo Horizonte, nas Minas gerais, os Caps,Cersam ou "Creche" não têm a mínima condição dignificante pra acolher pacientes como eu. Nunca quero estar na pele de um colega que fica ocioso o dia todo sem ter um leito pra descansar quando sedado. Caps é pra paciente que se contenta com muito pouco...
E em BH, as psicólogas, empregadas da prefeitura enganam os pacientes pra que eles não saibam que têm direito de se tratarem no Hospital Psiquiátrico. Tenho pena de meus colegas, pacientes psiquiátricos, que não têm seus direitos de escolha preservados e não passam de massa manipulada de profissionais que defendem seus ideais, atropelando a democracia e a saúde pública.