domingo, 26 de abril de 2009

Caminhos que "Desestigmatizam"?


O personagem Tarso, vivido brilhantemente pelo Bruno Gagliasso, tem dado muito o que falar. Todos os dias na minha sala, eu recebo clientes que vêm comentar comigo sobre as cenas da novela. Sentem-se identificados com o que Tarso está passando e felizes por estarem sendo vistos como pessoas que adoeceram e sofreram muito, trincando o imaginário social para o qual os esquizofrênicos são todos violentos e perigosos.

Bruno, com sua atuação perfeita, tem produzido em muitos que assistem à novela, uma vontade de cuidar. Ouço as pessoas dizerem que gostariam de ajudá-lo, que desejariam convencer seus pais a aceitarem o tratamento. Tarso tem despertado mais ainda a curiosidade sobre a doença e seu processo de desencadeamento. A loucura produz horror, mas através da novela tem produzido empatia e curiosidade. Pelo menos, esse é o retorno que tenho recebido!
A que se deve o sucesso da atuação do Bruno? Tive a oportunidade de acompanhar o ator durante a gravação para a matéria do Fantástico. Infelizmente, não usaram o que de melhor ele falou. Bruno conviveu de perto com pessoas que sofrem de esquizofrenia, dividiu momentos importantes com Hamilton, grande cantor e compositor do Harmonia Enlouquece e se inspirou nele para compor o Tarso. Bruno falou sobre sua própria travessia ao superar seus preconceitos, disse ser amigo de Hamilton e que nunca tinha tido um amigo esquizofrênico antes. Bruno mostrou seu envolvimento com a campanha social e acredita que seu personagem tem a tarefa de dar um golpe no estigma. Bruno revelou um compromisso com todos que convivem com a doença mental esquizofrenia. Boa parte de sua brilhante atuação, na minha opinião, deve-se ao respeito do ator pelos portadores da doença.
Talvez Bruno não tenha ainda idéia do que está fazendo... Eu também não sei o tamanho do impacto da novela, por isso pretendo pesquisar esse aspecto como parte do meu doutorado. O que penso, por agora, tem relação com o que Goffman coloca em seu livro sobre estigma. No livro, o autor aponta a possibilidade de três tipos de estigma: das abominações do corpo, das culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca ou não naturais, dentre elas, a prisão, o vício, o distúrbio mental, o homossexualismo e os estigmas tribais de raça, nação e religião. Goffman acentua que o processo de estigmatização tende a passar pela crença de que alguém com um estigma não é completamente humano. Focando apenas o grupo do estigma das culpas de caráter individual, dentro do qual Goffman coloca a loucura, penso que esse grupo mais do que os outros conta com mecanismos psicológicos. Portanto, imagino que o sucesso de Tarso tenha relação com a construção de um olhar sobre o louco que o HUMANIZA, confrontando o mecanismo de desumanização que Goffman descreve. Bruno tem sido extremamente eficaz em mostrar um Tarso humanizado, sem exageros, sem caricaturas, sem pieguice ... Isso toca no processo de estigmatização, incidindo sobre um dos seus elementos geradores, justamente a crença de que loucos não são completamente humanos. Tarso está produzindo dúvidas sobre isso e é ai que eu acredito que ele esteja iniciando um golpe no estigma!!
Há ainda muito por acontecer! Tarso tem um longo caminho pela frente. Desde já, partilho com vocês minhas primeiras elaborações e principalmente minha alegria de ver a novela e Bruno com tanto sucesso!!!

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dogmas, Diferenças e a Reforma Psiquiátrica

DOGMA é uma crença / doutrina imposta que não admite contestação. São afirmações absolutas que não permitem discussão, um conjunto sistemático de representações, normas ou regras que indicam ou prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar. Também indica o que esses membros devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e fazer (wikipédia – enciclopédia livre online). Portanto, dogmas são inimigos da diferença. Para os dogmáticos quem pensa diferente ocupa um lugar oposto no front da guerra e, como inimigo, deve ser eliminado.
Uma das experiências mais fortes da minha vida aconteceu durante o um ano e meio em que morei nos EUA, como já contei em outra postagem, convivendo com pessoas de diferentes países. Uma amiga da Palestina um dia conversou comigo por mais de duas horas. Ao final da conversa, com os olhos marejados de lágrimas, me agradeceu por tê-la ouvido sem julgá-la. Minha amiga me contou sobre sua dor, sobre seu ódio dos Israelenses, sobre as experiências dolorosas que viveu. Demonstrou submeter-se a um dogma e acreditava totalmente que o conflito do Oriente Médio jamais terá fim, pois não há possibilidade de os Palestinos ou os Israelenses abrirem mão de suas teses sobre a terra prometida. Não há mudança possível, para ambos os lados, segundo minha amiga. E o ódio se dá, pois um povo contesta o dogma do outro.
O que me permitiu ouvi-la contar tantas atrocidades por tanto tempo foi perceber que ela era alguém doce, especial, engajada, inteligente, mas tomada, dominada por um dogma. Incapaz de abrir mão dele, sem sentir-se traindo seus pais, seu povo e a si mesma. E sofrendo demasiadamente com isso, pois no fundo ela sabia que havia algum equívoco naquilo tudo. O ódio havia se tornado uma questão ética e política naquele contexto. Minha amiga me emocionou e talvez eu jamais consiga transmitir para ela, o que essa conversa produziu em mim. Até hoje nos escrevemos de vez em quando ...
Tendo sido militante política de um grupo de esquerda construí-me numa ideologia muitas vezes sectária. Ainda acredito na esquerda, nos ideais socialistas, mas minha experiência com gente de tantos países diferentes e, em especial, com minha amiga Palestina me fez entender que o sectarismo só serve à política do ódio. Uma estratégia nada revolucionária de propagação do horror e da destruição. Sendo, hoje, uma militante da reforma psiquiátrica e uma engajada em projetos de inclusão social para os diferentes, vejo e sinto no quanto minha amiga me ajudou.
Domingo passado Ferreira Gullar escreveu contra a lei 10.216, a lei que legitimou a reforma psiquiátrica no Brasil, propondo o fim dos manicômios e abertura de serviços substitutivos como os CAPS. O poeta é contra a lei, pede a revogação dela, tem dois filhos esquizofrênicos, diz que a lei dificulta o tratamento de seus filhos e quer a volta da internação como prioridade. O Poeta foi duro... Contudo, a resposta de vários colegas do meu campo de trabalho foi para mim por demais dolorosa de ler... Ataques ao Poeta com uma dureza maior ainda... Será que o Poeta não pode pensar diferente? Será que todos têm que concordar com a lei 10.216 para serem aceitos? Será que devemos responder à dor de um pai com a mesma dureza com que a sua dor se fez revelar? Será que o nosso campo considera o ideário da reforma psiquiátrica como um dogma incontestável?
Fico pensando se os filhos do Poeta receberam a ajuda necessária de nós profissionais. Fico pensando em quantos familiares não partilham das idéias de Ferreira Gullar e se conseguiremos ganhá-los para o nosso modo de tratar fora de internação, com intensidade de cuidado nos CAPS. Imagino o quanto ainda temos que lutar para mostrar para a sociedade como um todo que a lei 10.216 é uma conquista fantástica e que nós precisamos dos familiares para conseguir mais avanços ainda na reforma psiquiátrica brasileira. Fico pensando na minha amiga Palestina e na sua dolorosa filiação a uma política do ódio. Não podemos responder à dor de um pai, ainda que reacionário na sua forma de pensar, com política do ódio. Isso vai de encontro ao essencial de nosso trabalho: a aceitação da diferença e o respeito a ela. Não temos que concordar com o Poeta, mas acolher sua forma de pensar como possível, abrir o diálogo, aceitar que nosso campo pode ter falhado com ele e propor alternativas. Novos orientes médios se fazem todos os dias quando dogmas se colocam como a forma de entender a vida .... Dogmas não entendem de vida, não respeitam a diferença...Eles produzem morte e devastação!

sábado, 11 de abril de 2009

Não há Mocinhos nem Vilões



Hoje saiu na Veja online uma matéria do Marcelo Marthe criticando a novela das oito por demonizar os pais, através das histórias do Zeca e do Tarso... Uma amiga me enviou o link. Com todo respeito às opiniões diferentes, permito-me discordar e discorrer sobre isso... O título da matéria do Marcelo é "Família é a Vilã". Pretendo aqui discutir que, no que tange à loucura, não há necessariamente mocinhos nem vilões.
Tudo o que somos tem a ver com o que vivemos e nos identificamos subjetivamente ao longo da vida. Assim, somos o que fizemos daquilo que fizeram conosco. Nossas relações com tudo e todos e, significantemente com nossos pais, têm fundamental importância em nosso amadurecimento emocional.
A novela Caminho das Índias com seus personagens Zeca e Tarso em nada pretende demonizar pais, mas suscitar reflexões. Como já escrevi em outra postagem, acredito que vivemos numa época de falência do processo civilizatório, o qual pretende controlar os instintos de todos os homens. Zeca revela uma família que o cria sem limites, mas uma escola que também mostra suas dificuldades ao não conseguir produzir nele e em seus pais uma mudança de posição. A falência é de todos e a denúncia interessa para que possamos pensar.
Agora enfocando principalmente o personagem Tarso, digo que seu quadro de esquizofrenia não pretende apontar que a loucura é causada pela família. O próprio Tarso demonstrou sua impossibilidade de sair do controle dos pais. Sua irmã Inês encontrou um caminho, ainda que bizarro. Ele não. O sujeito tem a ver com sua própria loucura, assim como esta tem conexões com aquilo que vivenciamos com nossos pais, amigos, projetos, amores. As causas da esquizofrenia ainda não foram totalmente elucidadas. Supomos tratar-se não de uma doença única, mas de uma síndrome com diferentes etiologias. Um modelo explicatório aposta em determinantes biológicos, emocionais e sociais. Melissa e Ramiro, pais de Tarso, contribuíram com suas pressões para a loucura do filho, mas não foram seus causadores. Eles amam o Tarso e nunca quiseram seu mal. Apenas não levaram em conta os desejos do filho e não avaliaram as conseqüências de suas estranhas formas de amar. Muitos pais fazem isso e a novela serve de alerta. Isso esclarece e não demoniza!
Um contraponto importante vem da família de Ademir, o outro personagem que sofre de esquizofrenia. Sua mãe é extremamente participativa, compreende seu filho, o apóia em tudo e valoriza sua conquistas. Ainda assim, Ademir enlouqueceu... Outras questões provavelmente atravessaram seu caminho e o levaram a uma encruzilhada emocional e ao enlouquecimento. Portanto, a novela mostra diferentes processos e evidencia a multiplicidade de fatores envolvidos no desencadeamento de um quadro psicótico.
O maior objetivo de Glória Perez e de toda a equipe da novela é ajudar a diminuir o estigma contra aqueles que sofrem com esquizofrenia. Isso é um grande mérito. Glória se deixou tocar e sensibilizar por um tema bastante difícil. Demonizar quem quer que seja está longe de ser a proposta da trama, ela quer justamente o contrário... Humanizar os loucos, mostrar seu sofrimento e o de suas famílias, demonstrar o processo de enlouquecimento, enfatizar a possibilidade de recuperação pelo viés do tratamento e apontar as capacidades das pessoas que sofrem com transtorno mental.