quinta-feira, 14 de maio de 2009

A Menina que Gosta da Rua


Um dia ela me disse: Eu nasci da barriga de Deus e cai no meio da rua! Conheci a menina com nove anos. Andarilha na cidade do Rio de Janeiro. Fugia de casa desde os cinco anos. Um dia a mãe resolveu não mais procurar por ela. Ela voltava mesmo assim e fugia de novo. A mãe chegou a dizer, na frente dela, que preferia que ela já tivesse morrido. O que fez essa mulher ter tanto horror da própria filha jamais soube e jamais saberei...
O que sei é que a menina se recusou a morrer de fato... Morreu no desejo da mãe e isso é uma morte sem dúvida, mas viveu como pôde se encontrando com os desejos projetados na vida das ruas ... Na rua se formou . .. Conhece tudo por onde anda. Escolheu as praias da Zona Sul para estar ... E enlouqueceu ... Delirantemente diz-se filha de Deus designada para morar na rua. Faleceu no desejo da mãe, mas renasceu no delírio como filha de Deus. Como uma vez li de uma poeta paciente: Às vezes a dor não tem alívio, é só delírio! E no delírio a menina editou uma nova história para sua origem...
Tratei dela por muito tempo. Descobri que qualquer sucesso só seria possível indo para a rua com ela. E eu fui. Fizemos parceria com um abrigo e ela foi melhorando. Com o tempo já conseguia passar o dia na rua e voltar à noite para o abrigo. Um dia viajei e fiquei quatro anos sem vê-la. Ficou sendo bem cuidada por outras pessoas. Hoje ela está com 21 anos. Soube outro dia que estava internada compulsoriamente numa enfermaria psiquiátrica. Encontrava-se sem sintomas agudos e sentia saudade da rua. Ameaçava fugir... Fui buscá-la para vir morar numa moradia assistida e ter portas abertas para ir e vir. A menina fala de como precisa da rua, de uma forma visceral ... A rua é como se fosse ela mesma... Abrir mão de estar na rua é abrir mão de viver. Sair da rua é morrer. A vida está na rua. E ela faz sintomas clínicos: dispnéia, taquicardia... É um sofrimento atroz... Trabalhar com ela exige entender que precisamos deixá-la ir e só assim conseguir que ela volte.
Nada tem de fácil esse entendimento... Aliás desisti de fazer promotores e juízes entenderem. Só o contato com ela favorece alguma compreensão. E a menina parece saber disso: Deixa eu ir falar com a Juíza, eu explico para ela!
Agora a menina está nas ruas de novo. Não quis ficar na casa que eu lhe arrumei. Prometeu-me que vai voltar. Passo pelas praias na esperança de encontrá-la. Já tivemos desses encontros no passado. Essas conexões muitas vezes acontecem com os pacientes psicóticos. A menina já me encontrou de madrugada andando na praia de Copacabana na volta de um show, num restaurante no Leme ... Irei encontrá-la de novo...
Atender pessoas como ela exige uma quebra radical de paradigmas, uma abertura profunda para abraçar a intensidade de sua diferença e uma responsabilidade grande, mas sem medo do risco. A menina nos pede isso.
Quando estava longe tive um sonho com ela. No avião, indo para o país no qual morei por um ano e meio, de repente olhei para o lado e a vi. Surpresa disse que ela não poderia estar ali, que eu estava indo para longe e perguntei como ela havia entrado no avião. Ela sorriu e me disse: Eu vim na sua mala, Patrícia...
A menina que gosta da rua continua na minha mala subjetiva profissional... Ela me ensinou muito do que sei sobre psicose e muito do que eu não sei... Acredito que ela irá voltar, pois ela sabe que entendo o quanto ela necessita da rua e que a deixarei ir sempre que precisar ... Essa crença, ainda que angustiada, é o que me faz suportar a espera por um um novo encontro!
PS. Há alguns dias atrás ela reapareceu (30/05/2009)!

7 comentários:

Luciane disse...

Lindo texto, Patricia. Não sabia que vc a tinha levado para uma residencia.
Bjs,
Luciane

Anônimo disse...

patrícia, meu nome é isabela e adorei ter achado o teu blog!!!! sou estudante de direito e já estou fazendo minha monografia e confesso q fiquei mais feliz ainda ao ver no teu perfil q vc é psiquiatra. vou tratar sobre as relacoes das psicopatologias e a criminalidade e ,realmente, gostaria de saber se vc pode me ajudar de alguma forma, mesmo q seja com estatisticas publicadas, alguns sites, ...., enfim,..., é sempre bom pedir ajuda qndo se está precisando!:D meu e-mail é belaalimaa@gmail.com PS.: vc estará contribuindo para a futura publicação de um livro... ;p espero notícias

Renata disse...

Vi seu blog pelo de Bruno, confesso que amei, e vou voltar mais vezes.
bjs

LOUCA PELA VIDA disse...

Olá Patricia, somente uma sugestão, mude a cor da fonte, a letra vermelha cansa, agita, não consigo ler até o final. Azul, verde, preto tradicional ou cinza são mais suportáveis. Bem, mais se a maioria não achar isso, não leve em consideração.

Anônimo disse...

Você não deveria ser somente psiquiatra,e, sim escritora.Pense em escrever contos,pois vai dar muito certo. A história dessa menina é incrível, principalmente o tratamento que você segue, deixando-a livre e, ao mesmo tempo controlada.Impressionante,a história do avião...Como você se preocupa com seus pacientes...
Cada vez mais tenho orgulho de você.
Beijos

Márcia Haydée disse...

Nossa, eu lembrei dela... tão especial e muito ligada a vc. Por favor escreva um post sobre o reencontro. E apareça no meu blog... eu voltei e voltei para ficar. Beijos!!!!!!! Valeu por tudo aí!!! Vamos vencer tudo!!!

Anônimo disse...

Oi, querida!
Que texto lindo, bem escrito e emocionante!
Que bom que você está tão integrada na profissão que escolheu! Tão humana, empática e compreensiva! "Se todos fossem iguais a você", o mundo seria bem melhor!
O texto nos emociona, nos faz pensar sobre o que fazemos, como educadores e familiares, que podem edificar ou destruir uma personalidade! Ainda bem, que há profissionais como você, que nos dá esperança de dias melhores pra todos, principalmente os que são diferentes!
Te amo, te admiro e sempre te ponho nas Mãos de Deus, juntamente com todos que fazem parete da tua vida!
Com todo carinho da tia Maria.